Page 122 - Da Terra
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ESPALHAR MATERIAL
Tanta coisa a acontecer e nós para aqui castrados da língua. Demoro-te na espera, és o açúcar
do cigarro na borda dos lábios ngidos pelo vinho. Tenho pena. A escola começa amanhã, as
crianças andam ansiosas, fazem-me lembrar o primeiro dia. Falta-me estômago para
memórias. Engordo a olhos vistos só de pensar que um dia o coração me doeu, que um dia
certo formigueiro nos pulmões veio anunciar o cancro, que um dia na cama de um hospital ela
Por outras palavras, imagens diferentes do eu e do outro são con nuamente trocadas
disse esvaída em lágrimas: sinto o bicho dentro de mim, sinto-o como se fosse uma aranha,
no mesmo e único lugar, que é o lugar de um dos intérpretes: eu que ouço, eu que
sinto-o. Trazem-me mensagens às quais não respondo, falta-me saldo. E olho quem diante de anoto, eu que relembro, eu que escrevo. E é aqui que quero chegar, a esta língua
mim fala disfarçando a angús a que pesa entre cada um dos ombros. O corpo sente uma certa castrada que só não se reduz ao efeito estéril do documento porque transporta em si ?
pressão, uma coisa que empurra as pessoas para novas vagas de sofrimento. É dos prazos.
transportar no sen do de carregar ? a marca de água de um espelho. Os jovens de hoje
Mas vamos por partes, não fique também o leitor castrado da língua. O espelho mostra-me
trabalham muito também, mas é mais com a cabeça. An gamente era tudo feito
onde eu não estou, é um disposi vo que simultaneamente afirma e subverte o meu sen do
socialmente, agora é em solidão. An gamente os velhos contavam histórias, ou seja,
de iden dade. É aqui que quero chegar, ao problema da iden dade. Olho-me ao espelho homem e mulher não estão no mesmo lugar, mas é como se es vessem, porque, no
e vejo-me engordar de memórias (o pão também conta, mas esse deixa dobras aromá cas, fundo, o movimento apenas reproduz o facto de permanecerem está cos. E há
nada que ver com "lembras-te como éramos"). As fotografias registam agradáveis
também aquela mulher, dizem que problemá ca, calada como um cepo velho, batendo
fragmentos inodoros, deixam-nos castrados da língua à espera de um novo dia na escola,
nas coxas segundo um compasso interior ao qual não chegamos. Vou dar um exemplo
rostos instantaneamente reavivados. Éramos meninos, comíamos um olho de terra por ano.
literário: Ulisses não permite qualquer desconstrução da iden dade porque reúne em
Levávamos tudo à boca. A gente cantava nas vindimas e nas mondas do trigo. Há quem tenha si todas as forças contrapostas. Termina com um monólogo de Mary Bloom, uma voz
coiso para cantar, eu não. Eu tenho a língua castrada de correr pedras, há pés para que te que é preciso ouvir como se es véssemos a jogar sopa de letras: "eu queria tanto que
quero, ata cavalos. Eu fujo destes redemoinhos de tempo na cabeça gasta. Querem
alguém me escrevesse uma carta de amor", "eu queria adiantar o relógio para ficar
transformar-me em ruína arqueológica, caco cultural exposto em museu, figura etnográfica
perto da hora", "eu sempre gostei de poesia", "eles todos escrevem sobre mulher na
para entretenimento de curiosos. É isso, não é? Aqui num lar, centro de dia, casa de repouso.
poesia deles". A idade foi andando e isto tudo passando. A mulher problemá ca podia
Dantes morria-se e pronto, agora esperamos, esperamos, esperamos. Isto não se poderem chamar-se Mary Bloom ou Maria Belarmina e o compasso que lhe prime o gesto pode
sentar a meu lado deixa-me desesperado de vergonha. São os vírus que andam por aí, comem ser uma sucessão de imagens em busca de palavras, um acervo sem herdeiros,
tudo em quanto tocam. E é nisto que chego a um homem e a uma mulher, saltando de lugar.
inalienável, alienante.
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